Missao da Universidade
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 As reflexoes que seguem sao, provavelmente, uma variacao ao redor do
trabalho elaborado pelo Forum de Desenvolvimento Universitário, atuante
na Unicamp alguns anos atrás sob a coordenacao do Prof. Chambouleyron
(pro-reitor de pesquisa naquela época).

 Provavelmente, muito tem sido escrito sobre a Missao da Universidade.
Acredito que existem dois enfoques possíveis, saudavelmente
contraditórios e complementares. Em um deles, a Universidade tem a
missao de formar os tecnicos, profissionais e cientificos de alto nível
para as necessidades materiais e espirituais da sociedade. Em outro, a
missao da Universidade é transmitir, produzir e conservar o conhecimento
racional de mais alto grau. Os dois enfoques sao corretos em diferentes
medidas. Entretanto, parece-me que, quando assinalamos o objetivo de
expandir vagas e levar o mais nobre do conhecimento a setores cada vez
maiores da populacao, evidenciamos preferencia pela "Segunda Missao"
da Universidade. 

 Com efeito, a decisao pela "Primeira Missao" como guia para a
planificacao nos levaria a uma tarefa de dificil, ou impossivel,
realizacao: qual é a necessidade real da sociedade dos diferentes tipos
de tecnicos e cientificos? quantos criticos literarios, quantos
sociologos e quantos poetas sao necessarios? Quantos engenheiros (e em
que especialidades) serao necessarios os próximos 40 anos? Nao acho que
estejamos em condicoes de dar respostas contundentes a estas perguntas. 
 Assim, a Universidade tem a missao de produzir os profissionais
necessários mas, como nao podemos saber quais eles sao, esta definicao
tem pouca utilidade para tomar decisoes. 

 Por outro lado, se a Missao da Universidade é transmitir, produzir e
conservar o conhecimento racional de alto nível, a situacao muda. Quando
adotamos esta definicao, implicitamente acreditamos que a producao e
reproducao do conhecimento tem uma dinamica própria, que constitue um
bem social por si mesmo e que pode ser, nao apenas uma resposta a
necessidades pre-existentes, mas um elemento de interacao dialética com
estas necessidades e com a maranha de relacoes sociais. O conhecimento
contribuiria à criacao de cidadãos mais livres, mas conscientes, mais
críticos e mais felizes. Portanto, quanto mais, melhor. A própria
dinamica do conhecimento, por outra parte, seria um elemento decisivo
para decidir "qual conhecimento". 

 As vezes produz certa angústia o fato de que, em alguns países, há
taxistas que estudaram Sociologia ou Física. Quanto adotamos a "segunda
Missao" nada disto parece grave. É muito bom ter taxistas que conhecam
leis, geografia e arquitetura. Se isso, ao mesmo tempo, representa uma
frustracao para estas pessoas, é uma questao que não nos compete como
planificadores universitários. Como tais, devemos ter um olho no mercado
de trabalho, mas um olho distraido e um tanto indolente. Nao é o
duvidoso mercado de trabalho que deve orientar a planificacao da distribuicao de
conhecimento. Provavelmente, o mercado orientara naturalmente as
vocacoes. A Universidade deve oferecer um panorama tao realista quanto
possivel de tal mercado, mas nao limitar sua oferta de conhecimento em
funcao dele.

 Como deve ser uma Universidade cuja missao inalienável seja a expansão
do conhecimento racional e desinteressado? Evidentemente, nao pode ser
uma universidade onde a oferta de vagas esteja orientada pela tacanheria
e a contabilidade de número de cadeiras disponível. Deve ser uma
Universidade que reconheça que, felizmente, a Inteligencia se distribui
democraticamente nas diferentes classes sociais e, portanto, deve ser
generosa na oferta de vagas com um universalismo que maximize a
probabilidade de encontrar talentos em todos os setores, incluindo os
menos favorecidos. Uma universidade na qual a maioria de seus estudantes
pertence a classes privilegiadas certamente nao esta cumprindo bem seu
papel, nao porque seja injusta socialmente, mas porque está deixando de
lado a Inteligencia com certeza existente nas outras classes. É obvio
que a universidade navega numa populacao potencial com o estigma de um
ensino básico e médio de má qualidade e que, portanto, nao pode ser
responsabilizada totalmente por este desperdicio. Mas nao pode reagir
passivamente (ou seja, nao reagir) diante destas condicoes iniciais. 


 A Universidade Publica tem a obrigacao de expandir
suas vagas, nao apenas porque a sociedade assim o exige
(reclamando para seus filhos a educacao pela qual todos pagam) mas
porque é dessa maneira que as chances de cumprir sua missao mais nobre
sao maximizadas.

 Se bem me lembro, no Forum da Unicamp manejavamos uma atraente consigna
baseada no número 2: É possivel duplicar o número de vagas com o dobro
de eficiencia e a metade dos recursos. Outras consequencias resultariam
por regra de tres simples: com os mesmos recursos é possivel
quadruplicar o número de vagas, com o dobro de recursos multiplicar por
8, e assim por diante. Mais ainda, quando comparavamos o numero de vagas
oferecidas por universidades publicas paulistas em comparacao às
privadas chegavamos à conclusao de que "quadruplicar" era um objetivo
bastante modesto. 

 Entretanto, nao é possivel duplicar nem quadruplicar o numero de vagas
con a estrutura atual de universidade e curricula. Mais ainda, com as
nossas engessadas estruturas a impressao que se tem é que é impossível
aumentar uma única vaga sem pedir ao governo uma porcentagem adicional
proporcional de recursos. Sou bastante pessimista em relacao à
possibilidade de mudanças radicais (embora necessárias) nas
universidades paulistas existentes. Mudanças radicais seriam possiveis,
creio, em universidades totalmente novas, construidas a partir de zero.
As universidades existentes (USP, UNESP e Unicamp) deverao avancar em
direcao a objetivos como os do "triplo 2" atraves de modificacoes
lentas, que contarao com a oposicao ativa ou com o desgano de grande
parte dos tres estamentos da comunidade universitaria. Professores
temerao ser ludibriados e ter de dar mais aulas sem novas contratacoes,
estudantes temerao se acotovelar nas salas e nos comedores universitarios,
funcionarios temerao uma carga burocratica ainda maior. Acho tais
temores infundados em um contexto de profundas mudancas
estruturais. Se, estruturalmente, tudo continuasse como está, todos os
temerosos teriam razao.

 As Estrutras Suficientes que permitiriam uma expansao radical do numero
de vagas incluiriam os seguintes capitulos:

(a) Curricula: passar de muitas disciplinas superficiais e repetitivas a
poucas disciplinas profundas e definitivas. Hoje ensinamos um Cálculo
Leve a poucos estudantes que cursam, ao mesmo tempo, Fisica Leve,
Computacao Leve, Geometria Leve, e algum outro curso Leve, dependendo da
carreira. Para isso gastamos muitos recursos em aulas, material didatico
e professores e o resultado é que nos semestres seguintes devemos
acrescentar novas pinceladas leves aos conteudos levemente adquiridos.
Deveriamos passar a um regime de apenas duas disciplinas fortes por
semestre, com avaliacoes fortes e para muitos alunos. 

(b) Estrutura de aprendizagem: A consigna de "Muitos alunos" nao significa falta de
atendimento. Alunos educados em um sistema como o preconizado pelo Forum
podem e devem colaborar no ensino dos mais novos a partir do seu
terceiro ou segundo ano de estudos. A funcao do professor passa a ser,
de mestre repetitivo de turmas de 40 estudantes, a orientador (diretor
de orquestra) de grandes turmas de 300 ou 400 estudantes que seriam
divididos em turmas menores a cargo de estudantes superiores.

(c) Presença: Na maioria dos casos, o requisito de presenca fisica nas
aulas já é uma farsa e sao poucos os colegas que o tem em conta. Deve
ser eliminado totalmente. Quem quiser assistir a aula, que assista, e
quem nao quiser que nao assista, contanto cumpra com as avaliacoes de
maneira satisfatória. Muito se fala de Cursos a Distancia. Pois bem,
poderiamos resumir dizendo que todos os cursos deveriam ser "a
Distancia", com opcao presencial para quem quiser, com avaliacao
presencial obrigatoria, e com recursos de televisao, internet, etc, que
para isso estao.

(d) Desistencia ou abandono: É proprio de seres humanos abandonar as
tarefas para as quais nao tem talento ou vocacao suficiente, sobretudo
quando, na hora de comeca-las, tem pouca informacao sobre as mesmas.
A Universidade nao é uma fábrica de parafusos, na qual a eficiencia é
medida pela quantidade de aço usada em comparacao com a quantidade de
parafusos fabricados. A numerologia Formados/Ingressantes está errada e
deve ser desterrada de nossa ideologia universitária. É natural
desistir e muitas vezes inevitável. Para aliviar a natural frustracao
proveniente das desistencias, a criacao de titulos intermedios pode ser
bastante útil. Nada impede que um estudante com um ano aprovado ganhe o
titulo de Tecnico, com dois anos Perito, com tres Licenciado e com
quatro Mestre, ou coisas parecidas. 

(e) Avaliacoes: Sei que muitos colegas gostam de avaliacoes continuadas,
onde o aluno é acompanhado e seus conhecimentos mensurados em cada
etapa do processo de aprendizagem. A mim parece que isso é muito caro,
mas, pior ainda, que nao é bom para o conhecimento. Sou partidario de
avaliacoes globais. Creio que o estudante funciona diante dos conteudos
a serem incorporados de maneira parecida ao investidor com "aversao ao
risco". O risco, obviamente, é ser reprovado, e a conduta majoritaria é
estudar para que, digamos, o risco de ser reprovado seja menor que 10
por cento. As boas notas sao, muitas vezes, resultado do maior
pessimismo ou conservadorismo dos estudantes. Pois bem, facamos o
seguinte exercicio simplificado. Suponhamos que uma disciplina tem 10
topicos e que a nota para passar é 5. Se o estudante for avaliado
continuamente nos 10 topicos, ele tera certeza de passar estudando
apenas 5. Por outro lado, suponhamos que o estudante é avaliado em um
unico topico escolhido aleatoriamente (certamente no final do curso, em
forma de exame). Neste caso, para que a chance de ser reprovado seja
menor que 10 por cento o estudante devera estudar os 10 topicos. Se ele
estudar apenas 5 topicos, sua chance de ser reprovado sera 50 por cento.
Portanto, com uma avaliacao global sobre um ponto aleatorio a conduta do
estudante em relacao ao conhecimento é mais positiva que com uma
avaliacao de todos os topicos. Muitos dirao: "Ah, mas nao é bem
assim..." Com efeito, usei uma simplificacao, mas acredito que o
principio geral é valido. Todos sabemos que em cursos onde existem
muitas notas sobre muitos aspectos acaba passando todo mundo.

(f) Burocracia: Muitos dos requisitos burocraticos ora existentes se
baseiam na teoria da incapacidade do estudante para tomar decisoes.
Assim, limitacao para numero de disciplinas por semestre,
pre-requisitos, prazos para completar o curso, jubilamentos, etc. Eu
eliminaria tudo isso. De fato, nao vejo a necessidade nem da inscricao
nas disciplinas, pois a inscricao poderia ser o mero comparecimento ao
exame. A desorganizacao poderia existir, um pouco, nos primeiros anos,
mas depois as leis estatisticas se encarregariam de prever com
baixissimo erro a forma em que tudo funcionaria. Para isso a
universidade tem estatísticos, diga-se de passso. 

  Muitos colegas devem ter tomado conhecimento dos esforcos que
atualmente se realizam na Uniao Europeia para unificacao dos sistemas
universitários dos diferentes países. Eu ouvi alguma coisa, algumas
ideias me pareceram muito boas, outras nem tanto. Mas  acredito que deve
ser um tema a estudar, porque provavelmente iremos por caminhos
parecidos, amparados pelo conforto do principio de paternidade cultural.

 Peço desculpas por ter me estendido mais do que pensava, talvez com
mais entusiasmo do que pensava colocar e pouca documentacao na mão para amparar
meus pontos de vista. Ficarei feliz se os colegas acharem que alguns
deles merecem consideracao.

 J. M. Martinez
 Abril 2006